Corações em modo avião
Camões já não me fala com a surpresa do primeiro dia. Já não se espanta com os carros ou com as vozes que saem dos ecrãs. Agora, escuta-me. E quando me calo, olha-me como se visse tudo aquilo que eu própria finjo não ver.
Sentamo-nos lado a lado, ele com o olhar pousado sobre a cidade. Não a das caravelas, mas a dos semáforos, dos olhos presos a um vidro que brilha.
— Chamais a isto progresso? — pergunta-me, mas desta vez sem julgamento. Apenas curiosidade.
Não sei o que responder. Cresci neste tempo e ainda assim estranho-o. Sei os nomes das coisas, sei esconder sentimentos atrás de emojis, mas não sei se sei viver.
— Já não há monstros no mar. — digo-lhe, tentando ser positiva. — Temos desenvolvimentos tecnológicos excecionais, pequenas janelas para o mundo nas nossas mãos. Podemos falar com quem quisermos, ver tudo o que existe, saber tudo o que foi escrito.
— Tudo, dizeis? E ainda assim parecem tão sós.
Sorri com amargura.
— Talvez saibamos tanto, que deixámos de saber o que é sentir. Perdemos o silêncio, o espaço entre os pensamentos. Tudo corre, tudo exige respostas. E quando o mundo abranda… ficamos perdidos.
Ele olhou-me com atenção.
— E vós, pareceis tão nova e tão cansada.
Sentei-me ao seu lado.
— Tenho de ser perfeita, ou pelo menos parecer. Tudo é uma corrida, Camões. Mas nunca sei se corro por mim, ou porque todos os outros correm. Só sei que não posso parar.
— O que vos impede?
— Medo de ficar para trás. Medo de não ser nada. Há tanto ruído que já não me oiço. Queria ter tempo para descobrir quem sou… mas até o tempo aqui parece fugir. Sinto-me uma fraude, não faço ideia do que gosto, quem sou e o que quero ser.
Camões respirou fundo. — Lembro-me de batalhas, de mares revoltos, de fome. Mas havia uma coisa que não deixávamos de fazer: pensar. Sentar, sentir. Também sofríamos? Sim, mas por coisas que tocávamos com as mãos e com a alma.
Olhou para o céu, onde drones zumbiam como insetos de metal.
— O mundo que eu cantei era feito de coragem, de glória e dor. Os homens cruzavam oceanos por amor, por fé, por ambição. Este… parece feito de pressa, atravessam o mundo com um clique. Ligam-se a tudo e a todos, menos ao que realmente importa.
Baixei os olhos. Ele tinha razão. Tantos recursos, tanta informação, tanta tecnologia… e tão pouca verdade. Tão pouca pausa. Não se para para pensar. Para sentir. Nem eu para perguntar: Quem sou eu, sem os testes? Sem as notas? Sem o medo de falhar?
Permanecemos em silêncio. De súbito, ele perguntou:
— E ainda amais?
— Sim… mas talvez de forma mais apressada. E quando dói, distraímo-nos com luzes. Fingimos que está tudo bem, porque é feio mostrar fragilidade.
— Pois eu vos digo: há mais força em quem sangra com verdade do que em quem esconde a ferida.
— Ah!… — Suspirei. — E vós… o que pensais deste século?
Ele não respondeu logo. Observava uma criança que corria atrás de um pombo. Depois, disse:
— É belo, de uma forma que não compreendo. Mas temo que, no meio de tanta invenção, vos esqueçais de sentir.
Ele fecha os olhos por instantes. Depois, recita, quase num sussurro:
— Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Mudam-se os serenos e os cuidados
Mas permanece o coração humano,
Que na alegria e na dor é sempre igual.
Esses versos, inventados por ele ali mesmo, ficam a pairar, enquanto a cidade continua lá fora, apressada.
Camões, então, ergue-se. A sua figura começa a esvanecer-se como nevoeiro ao nascer do sol. Mas antes de partir, sorri-me e diz:
— Não temas o mundo novo. Tem apenas cuidado com o que nele deixas morrer. Podeis esquecer a história, as rimas, até o meu nome… mas não esqueçais o que vos torna humanos. Isso é o vosso poema eterno.
Raquel Vences Nobre Ferreira | 12.º ano